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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, novembro 24, 2012

Não há outra saída para o problema senão a de permitir o uso de drogas a quem quiser, e colocar o comércio de narcóticos no sistema das atividades organizadas e fiscalizadas pelo Estado

O México é aqui: o inferno em SP

VIa Jornal do Brasil


Mauro Santayana
As elites paulistanas e sua representação política queriam que o Brasil fizesse parte da Alca, o mercado comum hemisférico. Não entramos no Acordo que, por nossa oposição, implodiu — mas os americanófilos de São Paulo podem comemorar: já estamos no Nafta, ao lado do México. São Paulo voltou a ser o inferno de há alguns anos, com a morte ceifando nas ruas. Os fatos fazem  lembrar os fortes versos de Edgar Allan Poe, em The City in the sea, que Bárbara Tuchman usou como epígrafe ao seu livro, The proud tower: “Assim, tudo parece pendente no ar, enquanto de uma orgulhosa torre na cidade, a morte olha com gigantesco desdém”. 
“O mais dramático na matança em São Paulo é que são soldados pobres os que morrem”.
Ao contrário do que nos quiseram fazer acreditar os perturbados teólogos medievais, os infernos (sempre plurais) não são maldição divina, a nos esperar na Eternidade, mas construção humana.Os infernos se fazem sobre o chão da injustiça, e injustiça é sinônimo de desigualdade. O mais dramático na matança em São Paulo é que, na guerra entre os criminosos e os policiais, são soldados pobres os que morrem. Os soldados do crime e os soldados da Polícia Militar. Não há heroísmo nem romantismo nessa guerra cotidiana, mas sim a brutal expressão da violência. 
Chegamos a um extremo que só outro extremo poderá resolver. Ainda que haja outras organizações de delinquentes (como a do goiano Carlos Cachoeira, colocado em liberdade pela mesma Justiça que a outros condena sem provas), a criminalidade mais brutal é a que se relaciona com o tráfico de drogas. Não há outra saída para o problema senão a de permitir o uso de drogas a quem quiser, e colocar o comércio de narcóticos no sistema das atividades organizadas e fiscalizadas pelo Estado. Em uma visão radical, mas necessária, podemos concordar com Stuart Mill, em seu ensaio clássico On liberty: o indivíduo é livre para fazer tudo o que quiser com ele próprio, até mesmo matar-se, desde que não prejudique os outros. A sociedade não pode intervir nas decisões que só a ele concernem. Sendo assim, as pessoas devem ter o direito de se drogarem, desde que não induzam outras a fazê-lo, nem, sob o efeito do narcótico, venham a cometer qualquer crime. Nesse caso, devem ser punidos conforme as leis.
Se o uso de drogas fosse legalizado, muitos usuários continuariam a morrer de overdose, é certo; e muitos continuariam a agredir e a matar, como se agride e se mata por outros motivos, mas não haveria organizações criminosas para produzir e distribuir entorpecentes, e não haveria  bancos para administrar esse dinheiro encharcado de sangue, como fazem hoje grandes instituições financeiras internacionais. Não havendo tão fortes interesses, não teríamos as guerras entre bandos rivais de facínoras e entre eles e a polícia (na qual há  grupos criminosos, como as milícias, também associadas ao narcotráfico, ao jogo, à prostituição).
As leis penais brasileiras são, elas mesmas,construtoras do crime. Como bem apontou, recentemente, o médico Dráusio Varela, um dos homens que mais conhecem o desespero dos presídios, é uma estupidez colocar, nas mesmas celas em que se encontram os grandes assassinos e assaltantes ousados, os pequenos traficantes de drogas e  trombadinhas. Além do duplo castigo — o da prisão em si e o da violência dos mais fortes, que horroriza os que conhecem a realidade infernal da cadeia — os pequenos delinquentes alimentam, ali, o seu ódio natural contra a sociedade e, ao sair do presídio, já saem vinculados a um bando qualquer.
Há, no entanto, os poderosos que cruzam os braços e, sob a ilusão de que são inatingíveis e invulneráveis, parecem regozijar-se no íntimo com o extermínio mútuo dos pobres. Mas não há, nessa guerra, escudos contra o chumbo.
O medo já começa a atingir a  classe média e os empresários de São Paulo. Muitos dos que têm recursos para fazê-lo  mudam-se da cidade,  mandam os seus filhos  para a Europa. Constroem em condomínios fechados e guardados por exércitos de “seguranças”, eufemismo inexato para designar os antigos capangas dos meios rurais —  se deslocam aos seus escritórios em helicópteros, de forma a evitar o risco das ruas. São tão prisioneiros quanto os capitães do PCC que se encontram entre as grades: não conhecem a liberdade das ruas.
“O Estado tem o dever de segregar os criminosos  mas não tem o direito de os meter em celas superlotadas”.
Outra coisa: o Estado, em nome da sociedade, tem o dever de segregar os criminosos punidos pela Justiça, mas não tem o direito sádico de os meter em celas superlotadas, infectas, sórdidas, deixando-os ali a se entrematarem sem qualquer proteção.
Esta guerra não será amainada, enquanto não houver lucidez e solidariedade para com a espécie humana. Se não houver coragem de se resolver o problema da desigualdade — desigualdade diante da justiça,desigualdade diante da vida — daqui a pouco os criminosos serão a maioria absoluta da população. Se isso vier a ocorrer, como será?
Onde hão houver justiça, jamais haverá paz. 
*GilsonSampaio

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